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Foto do escritorPedro Cunha

Diolinda (Marli Aguiar)

Atualizado: 25 de mai. de 2020

Ela cata, tria e trabalha. Corpo franzino, pele áspera rosto cansado. Após uma longa viagem, e conviver gente diferente longe de seu habitual fardo de diversos, recicláveis, coloridos materiais. Deolinda era normal, assim como Estamira*, as vezes não diz coisa com coisa. Não há conexão entre suas palavras. A razão e a loucura dialogam entre si. É corpo de mulher. É quase normal este estado, pois, muitos consideram sua espécie mulher, louca. Deolinda grita, se debate, xinga, morde, briga com o marido e sorri. A viagem é longa, a dela e dos passageiros, principalmente Sr. Dedé seu esposo, que viaja lado a lado, cuidando-a, lhe dando afeto no meio do caos. Ternura parecia que era o que mais lhe fazia falta. Deolinda não descansa. É abstinência, é dor de amor, é ausência de afeto para si, e para uma maioria no mundo. Ouve- se mais gritos. E as opiniões que vem de vários os lados, impaciência: Um vizinho do assento da frente que queria dormir dizia, - Ela está louca. Chamem o SAMU.

Outros no banco dos fundos do ônibus: – Se fosse comigo já teria dado uns tapas. E uma senhora de olhos arregalados pergunta: - Porque não tomou remédio antes de vir? Tornou-se um burburinho, uma agitação dentro do ônibus e a vigem transcorria. A loucura naquele momento era preta e feminina, muitas se cuidavam para não serem afetadas nem pelas ideias de Deolinda, e menos pela filosofia de Estamira. E todos sabiam, ela, Deolinda carecia de algo mais, além da paciência de Sr. Dedé seu esposo. Nas longas noites sem dormir, falando, gritando, esperneando, carecia de algo mais. Alice em silêncio, sai de sua poltrona, com pés suaves, trazendo nãos lábios e no coração uma canção, quase em sussurros, bem baixinho. De alguma forma a música que ninguém sabia de onde partia, trouxeram memorias afetivas e de acalantos a Deolinda. Alice pede licença a Sr. Dedé, sento ao lado da mulher despenteada e olhar no infinito, ainda sussurrando baixinho. Alice a abraça, a dor cessa, Diolinda adormece e tudo vira silencio, calor e afeto.


(Marli Aguiar – Mini-Conto - Publicado no livro #NemUmaAmenos. Ed. Versejar - 2020)


*Estamira é catadora de materiais recicláveis e trabalha no lixão no Rio de Janeiro com outros amigos catadores e catadoras. Ela tem problemas mentais e filósofa da vida, do meio ambiente, de Deus e problemas sociais e a vida nos lixões das grandes metrópoles. Foi feito um documentário em 2006 sobre sua história por Marcos Prado e José Padilha.


AVISO: Esta obra é parte da mostra virtual "Letras Negras: Quem fala a língua dos negros?", e é propriedade intelectual dos artistas citados. Não reproduza sem autorização.


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